CALOTE
LINGUÍSTICO
Ronaldo da Silva Legey, em 04/08/2014.
Delenda est
Carthago. Ouvi
pela primeira vez esta frase, aos onze anos de idade, nas competentes aulas de
História Geral do Prof. Azevedo Corrêa, no Colégio de São Bento, o qual
conseguiu fazer uma criança pré-adolescente guardar, até a sua provecta idade,
não o fato histórico em si, mas a frase. De fato nunca a esqueci! Gostava do
som da palavra delenda, da força que tinha para expressar em um só
termo aquilo que, em português, demandava toda uma perífrase: deve ser destruída. E, com toda certeza,
não era tocado pelo triste significado de destruição e violência que expressava.
Cartago, pelo que pude colher no Wikipédia, foi uma antiga cidade,
originariamente uma colônia fenícia no norte da África,
situada a leste
do lago de Túnis, perto do centro de Túnis,
na Tunísia.
Foi uma potência na Antiguidade e disputava
com Roma o
controle do mar Mediterrâneo. Dessa disputa originaram-se
as três Guerras Púnicas, após as quais Cartago foi
destruída.
A célebre frase é atribuída ao
político romano Catão,
o Velho (234-149 a.C.), que propunha
no Senado
a destruição total de Cartago. E
Cartago foi destruída.
Delenda,em latim, é o gerundivo do verbo dēlěre,
que significa 'apagar, remover, suprimir'. O gerundivo,
que não deve ser confundido com o gerúndio, é também conhecido como particípio
futuro passivo e geralmente se refere a um sustantivo,
mencionando-o como merecedor de ser objeto de uma ação,
mais especificamente algo que não ocorreu, daí classificá-lo no futuro latino,
como se pode verificar nos exemplos a seguir:
Delenda est Carthago: Cartago deve ser destruída
Carmen cantandum: canção para ser cantada
“procul uidenda est
insula” (Ov., Metam., XIV, 244) “a ilha pode ser vista de longe”.
O português, já o sabemos,
originou-se do latim, porém, nossa língua não tem nenhuma forma verbal capaz de
ter a força do gerundivo. Para traduzi-lo, temos de recorrer a perífrases do
tipo: deve ser, tem de ser, precisa ser, pode
ser...
O gerundivo não deixou em
português nenhum traço de sua antiga acepção verbal. Existe, contudo, um certo número de palavras que
são provenientes dos gerundivos latinos. Elas se mantiveram e se conservaram
como cultismos. Tal é o caso de agenda (do verbo latino āgere, 'fazer')
com o significado de o que deve ser feito; educando, com o
significado de o que deve ser educado; o nome feminino Amanda que
vem a ser a que merece ser amada; assim também com o nome Miranda, que
significa a que merece ser admirada; admirável.Há ainda adjetivos
como nefando, venerando, moribundo etc.
E Coutinho (1969:276) menciona também a criação, em português, de formas
terminadas em --ndo, com valor de substantivo verbal, numa série de
palavras cultas: “educando”, “formando”, “graduando”, “doutorando”.
Mas o radical latino do verbo dēlěre permanece
vivo em palavras como delével, indelével e no atualíssimo deletar, fartamente utilizado em informática para se dizer apagar,
suprimir, remover, embora o dicionário Houaiss recomende: palavra a evitar.
Segundo Viaro (2013), deletar nos chegou via inglês americano,
em virtude de um movimento de relatinização
moderna na criação de palavras em português. É de se estranhar, pois o inglês é
uma língua que não provém do latim, apesar de possuir um número enorme de palavras latinas herdadas
do francês. Em informática, porém, ciência desenvolvida nos Estados Unidos,
usa-se o verbo to delete, vindo do
verbo latino dēlěre. O português adotou deletar, da mesma maneira que usa inicializar(to initialize), printar ( to
print) e muitas outras.
Viaro acentua ainda que os
puristas torcem o nariz para essas palavras. Todavia, não há o que fazer. Diz
ele muito espirituosamente que:
[...]
não fomos nós, brasileiros, que inventamos a informática, então por que
rejeitar os termos do país em que se originou essa ciência? Também não
inventamos o violino e o violoncelo e usamos os termos desde o século XVI. Não
inventamos a pizza, a lasanha, o estrogonofe, o hambúrguer ou o sushi.
Assim foi com futebol, do inglês football, abajur, do
francês abat-jour, galocha,
igualmente do francês galoche.Para
essas palavras tentou- se criar substitutos do tipo: ludopédio, lucivelo e o
incrível anidropodoteca, os quais, decididamente, não pegaram. Palavras
tomadas de empréstimo a outra língua ficam, nunca mais voltam à língua que as emprestou.
Seria uma forma de calote linguístico? Talvez melhor dizer inadimplência, já
que calote parece originar-se também do francês.
Referências
- COUTINHO, Ismael de
Lima. Pontos de gramática histórica. 6a
ed. Rio de Janeiro: Acadêmica, 1969.
- HOUAISS, Antônio e
VILLAR, Mauro Salles. Dicionário
Houaiss da língua portuguesa. Rio de janeiro: Objetiva, 2009.
- VIARO, Mário Eduardo. Manual de etimologia do português.
São Paulo: Globo Livros, 2013.
- WIKIPEDIA.
Cartago. Disponível em< http://pt.wikipedia.org/wiki/Cartago>,
acesso em 14/08/2014.
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