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OS DILEMAS DA TRADUÇÃO

 

OS DILEMAS DA TRADUÇÃO

Ronaldo Legey

Novembro/2020

 

Ao traduzir para o francês o artigo “Segundo turno”, de Bruno Astuto, publicado na Revista Ela de 22 /11/2020, um problema se me apresentou como intransponível, qual seja, como encontrar a correspondência da expressão idiomática “No frigir dos ovos”, do português brasileiro, com o francês da França. Mesmo pesquisando nos dicionários disponíveis e também na Internet, o resultado não foi encorajante. Tive mesmo é de usar sinônimos do tipo “en fin de compte”, “tout compte fait”, “en somme”, “enfin”, “en conclusion”, que dão ideia do sentido da expressão em tela, deixando, porém, de lado qualquer vestígio do “frigir” e dos “ovos”.

Entretanto, tive a sorte de encontrar na Web a dissertação de mestrado de Mariele Seco, intitulada “Gastronomismos nas Expressões Idiomáticas do português do Brasil e seus correspondentes em francês da França”, apresentada em 2017 à Universidade Estadual Paulista (UNESP). A pesquisa da autora me foi de grande socorro.

Para começar, Seco nos diz ser muito difícil traduzir para outras línguas expressões idiomáticas, pois sendo

 

 [...] lexias complexas, indecomponíveis, conotativas e cristalizadas em um idioma pela tradição cultural [...], podem gerar dificuldades na intercompreensão dos estrangeiros que não partilham de uma mesma cultura e, portanto, que não reconhecem suas referências extralinguísticas (2017, p. 9)

 

De fato, cada povo, cada cultura dá ao léxico de sua língua valores que lhe são próprios, aquilo que a linguística designa pelo nome de cargas culturais compartilhadas, conceito criado pelo linguista francês Galisson. Tais cargas culturais se caracterizam como um segundo conteúdo do signo agregado ao significado da palavra. Daí ser mesmo difícil traduzir para outras línguas as expressões idiomáticas tal como elas existem. E possivelmente apresentam também dificuldades à intercompreensão dos estrangeiros que não compartilham a mesma cultura e, obviamente, não reconhecem suas referências linguísticas.

Barbosa exemplifica bem como este conceito de Galisson: pode ser reconhecido nas palavras –ou expressões –carregadas de outros sentidos culturais. Trata-se, portanto, da carga cultural compartilhada que, no contexto brasileiro, ganha corpo por meio de nomes próprios, marcas de produto, objetos inanimados, animais e plantas:

a). Abacaxi: A expressão “descascar um abacaxi refere-se a uma situação difícil de ser resolvido. A carga cultural compartilhada (o segundo conteúdo ou sentido) deve-se ao fato de que essa fruta possui uma casca difícil de ser retirada. “Ah, agora tenho que descascar esse abacaxi! ”

b). Ser carne de pescoço: refere-se a algo de qualidade ruim. Também pode referir-se a uma pessoa de dura, de difícil trato. Está relacionada à qualidade ruim da carne. Os versos da letra “Carne de pescoço”, do grupo Barão Vermelho, ilustram bem essa ideia.

Baby, você marcou touca/Porque eu sou carne de pescoço/Você topou com um louco/ Pra se livrar de mim/Vai ser fogo!

c) Ser Amélia: diz respeito ao estereótipo de gênero, especificamente àquele da mulher submissa, dedicada aos afazeres domésticos. Tal imagem foi criada a partir do samba “Ai! Que saudades da Amélia”, composto por Mário Lago e Ataulfo Alves, em 1941.

 

Corroborando os pontos de vista de Mariele Seco, vamos encontrar em Tagnin uma boa definição de expressão idiomática:   

  Uma expressão é idiomática apenas quando seu significado não é transparente, isto é, quando o significado da expressão toda não corresponde à somatória do significado de cada um de seus elementos (Tagnin, 1989: 13).

Então nos damos mesmo conta de que traduzir é uma atividade complexa. Está longe daquilo que muitos pensem ser apenas um transpor de palavras de uma língua para outra. E em se tratando de expressões idiomáticas, “c’est là le hic”, como se diz em francês, ou seja, “é aí que a porca torce o rabo”. O tradutor tem de conhecer muito bem sua própria língua e a língua-alvo, pois segundo acordo Seco,

as expressões idiomáticas apresentam grande dificuldade de tradução porque estão estritamente ligadas ao extralinguístico, fazendo parte do dia a dia elas são frases corriqueiras, geralmente do registro informal e carregam todo tipo de carga cultural vivida por uma comunidade linguística.(op. cit.,p.44).

 

Levando-se em conta o provérbio italiano que diz ser “il traduttore, traditore”, é preciso que, no trabalho de tradução, tenhamos em mente que verter uma expressão idiomática para outra língua demanda uma correspondência de sentido entre as duas línguas que possa dar dentro de algumas possibilidades:

1-    Com correspondência total, ou seja, mesma estrutura sintática, mesma imagem, mesmo léxico e mesmo conteúdo:

 

·         Galinha dos ovos de ouro/ Poule aux œufs d’or

·         Ganhar o pão/ Gagner son pain

·         A pão e água/ Au pain et à l’eau

·         Não se faz omelete sem quebrar os ovos/ On ne fait pas d’omelette sans casser des œufs.

2.  . Com correspondência parcial, ou seja,

a) mesma estrutura ou estrutura léxico-sintática muito semelhante, porém, o conteúdo semântico não é totalmente recoberto: “vermelho como um tomate”/ “rouge comme um homard”.

b) estruturas léxico-sintáticas diferentes, mas o mesmo conteúdo semântico: “contar com o ovo antes de a galinha botar”/ “vendre la peau de lours avant de l’avoir tué”

C)  estruturas léxico-sintáticas diferentes, mesmo conteúdo semântico, mas contexto de uso diferente: “virar presunto”/ “aller ad patres”.

A seguir, alguns exemplos mais:

·         Debaixo deste angu tem caroço/ Il y a anguille sous roche.

·         Descascar a banana/ Dégorger le poireau.

·         Descascar o abacaxi / Résoudre un pépin.

·         Encher a pança S’en mettre plein la lampe.

·         Mamão com açúcar / C’est du gâteau.

·         Procurar pelo em ovo/ Chercher midi à quatorze heures

·         Estar por cima da carne-seca/ Tenir le haut du pavê

·         Estar com a faca e o queijo na mão/ Tenir le bom bout.

·         Falar abobrinhas/ Raconter des salades.

·         O rei da cocada preta/ Avoir la grosse tête

·         A batata está assando/ Être dans le pétrin

·         A última bolacha do pacote/ Avoir la grosse tête

·         Acabar em pizza/ Finir em queue de poisson

·         Estar de ovo virado/ Se lever du pied gauche

·         Fazer boca de siri/ Motus et bouche cousue

3. Sem correspondência e neste caso é preciso encontrar sinônimos e palavras equivalentes para traduzir

·         No frigir dos ovos

·         Chorar as pitangas

·         Manjar dos deuses

·         Pôr mais água no feijão

·         Dar bode/ Mal finir.

 

E aqui fica o presente texto à disposição das sempre benvindas críticas. O que não se pode fazer é “chutar o balde”, ou seja, como se diz em francês,  “jeter l’éponge”.

 

Referências

1.    ASTUTO, Bruno. Segundo turno. Ela. Rio de Janeiro, p. 62, novembro 2020.

2.    BARBOSA, Lúcia Maria Assunção. O conceito de lexicultura no contexto de ensino de línguas. Disponível em:< http://pgla.unb.br/images/documentos/artigo_capa_lucia.pdf> Acesso em: 26 nov. 2020

3.    Expressions.fr: les expressions française décortiquées. Disponível em: < https://www.expressio.fr/expressions/s-en-mettre-plein-la-lampe>. Acesso em nov. 2020

4.    Expressões idiomáticas e convencionais. São Paulo: Ática, 1989. Disponível em: < http://pgla.unb.br/images/documentos/artigo_capa_lucia.pdf>. Acesso em 25 nov. 2020

5.    SECO, Mariele. Gastronomismos nas Expressões Idiomáticas do português do Brasil e seus correspondentes em francês da França. Dissertação de mestrado. Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, 188f. São José do Rio Preto: 2017.Disponível em <https://repositorio.unesp.br/bitstream/handle/11449/151706/seco_m_me_sjrp.pdf?sequence=3&isAllowed=y.:Acesso em: 26 nov. 2020.

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