É
ERRO MESMO?
Estudo
realizado por Ronaldo Legey
15/11/2018
Quando garoto, bastava dizer “eu vi ele” que logo recebia a cuidadosa correção de minha mãe: “Não
se diz ‘eu vi ele’, mas ‘eu o vi’”.
Bons e saudosos tempos! A lição foi aprendida e, mais ainda,
posteriormente reforçada pela escola. Esta nos ensinou que a gramática da
Língua Portuguesa estabelece o uso do pronome reto exercendo a função de objeto.
Assim sendo, ele, ela, eles, elas, que são
pronomes do caso reto, não devem ocupar a função acusativa, ou seja, não podem
funcionar como objeto direto, pois esta é uma função própria dos pronomes
pessoais do caso oblíquo.
Pois
é, mas as línguas são caprichosas, são um sistema vivo e dinâmico e, não raro,
apresentam fenômenos que se opõem às regras gramaticais que nos são ensinadas.
Simples assim. Caso flagrante é o do uso dos pronomes do caso reto ele e suas flexões como objeto direto. Cansamos
de ouvir por aí: “Não vejo ele faz
tempo”; “Eu quis elas aqui, mas elas
se recusaram a vir”. E até mesmo nos flagramos falando desta maneira!
Os
falantes que conhecem a norma padrão se adaptam melhor a ambientes mais
formais, mas ao usarem os pronomes pessoais átonos o, a, os, as
(os chamados clíticos) em contextos informais, é bem possível que sejam tomados
por pedantes. Por isso mesmo, e até inconscientemente, vemos brasileiros, independentemente de sua classe social e
de seu nível de formação, dizerem, quando em situação de na linguagem oral: “Eu encontrei ela ontem na cidade”; “Eu
busquei ele hoje no colégio”.
É errado? É preciso cuidado ao se
perguntar isto, pois os
estudos linguísticos apresentam uma reformulação da noção de erro por ser esse
conceito contraditório no que se refere ao seu olhar sobre o fenômeno
linguístico.
A língua, como vimos, é um ser vivo e, como tal, está
em permanente mudança, apresentando variantes e variações. A clássica noção de erro linguístico
parte do princípio de que a língua não é
variável, mas sim um sistema a ser respeitado no seu aspecto estrutural e
formal sem nenhuma interferência de outra ordem. Impossível, posto que as mudanças vão ocorrendo,
queiramos ou não, impulsionadas pela necessidade que têm os falantes de se
comunicar melhor. Se assim não fosse, estaríamos até hoje falando a nossa
língua-mãe, o latim. Então, dizer que tal ou qual forma de falar é errada é
mais um preconceito linguístico, o qual está atrelado ao registro ou variação
diafásica que o falante esteja adotando. O registro da conversação familiar é
diferente do de uma conversação cerimoniosa; o registro da língua escrita é
diferente do da língua oral, e assim por diante. Pensar em “erro” é perder o foco e desconsiderar a
natureza da língua, confundindo-a com a gramática e reduzindo-a a um código
rígido com todas as abstrações que ele envolve.
Bagno (2009, p.149), no tocante ao uso do pronome do
caso reto como objeto direto, nos alerta para o fato de que
Se tem uma coisa que a gente pode afirmar com muita
segurança, é que na nossa língua – em sua modalidade falada espontânea – os
pronomes oblíquos de 3ª pessoa – o, a, os, as – estão praticamente extintos.
Diante disto, não podemos perder de vista a questão da
variação linguística. Labov, o fundador da sociolinguística variacionista, já
afirmava que “a variação é inerente à linguística, sendo não só natural, mas
também necessária para o funcionamento de uma língua”. A língua que as pessoas
usam para se comunicar com os outros na vida cotidiana é cheia de variações. Azeredo também captou bem este fenômeno:
Nos
registros mais informais [...] como a conversação descontraída de pessoas
íntimas, mesmo os falantes mais escolarizados tendem a substituir as formas
oblíquas átonas o/a/os/as por ele, eles, ela, elas, quando relativas à pessoa
de quem se fala. (AZEREDO, 2010, p. 259)
Mattoso Câmara, de quem tive a honra de ser aluno, também
já ensinava que “um dos traços mais característicos do português do Brasil é o
uso de ele (e suas variantes de feminino e plural), como um acusativo;
ex: vejo ele, em lugar de vejo-o”. Esse uso é tão comum que pronomes oblíquos
de terceira pessoa na fala dos brasileiros parecem ser utilizados apenas em
contextos formais.
E é de se ressaltar que este não é um fenômeno de agora
nem se verifica apenas no português brasileiro. Em sua dissertação de mestrado,
Penna (1998) observa que, em textos notariais do período arcaico da língua
portuguesa, ela já encontrara o emprego não enfático do ele acusativo. São dela as citações a seguir:
· Damos
elle a uos e a toda uossa uoz (Séc.
XIV)
· ...
e as justiças não agrauen eles cõtra
sas forças, (sec. XIII/XIV)
· ...aquella
uina dos muymêtos qual foy de Pelayo Fernandez en tal maneyra que lauredes
ella. (Séc. XIII)
· Doulas
en tal condizõ a Sancta Maria que eu tena ellas
en mina vida. (Séc. XIII)
E também o Dicionário Houaiss explica
que ele, pronome pessoal, aparece
esporadicamente, em textos arcaicos, na função de objeto direto e que, no
Brasil, tal uso é frequente na variante informal, embora condenado pela
gramática normativa: Eu vi ele, Maria ama ele.
Então,
não sendo esta apenas uma característica do português brasileiro, temos de
contestar aqueles nossos compatriotas que afirmam falar o brasileiro o
português de forma errada. Puro nonsense! Penna (op. cit.) também corrobora o
que afirma Houaiss. Em seu estudo, a autora apontou-nos ainda um aspecto muito
importante: o uso do pronome ele e suas flexões na função acusativa
não representa de fato criação do povo brasileiro, mas parece ser conservação
de estruturas linguísticas já há muito “perdidas” no país português d’além-mar.
Essa permanência de elementos arcaicos no português brasileiro contribuiu, do
mesmo modo que as inovações, para a diferenciação dos dois sistemas. Trata-se,
portanto, de fenômenos de retenção de estruturas, os quais mostram que a língua
portuguesa falada hoje no Brasil, em certos aspectos, se aproxima da língua
portuguesa trazida pelos primeiros colonizadores e, ao mesmo tempo, se
distancia, por este mesmo cunho conservador, do português europeu atual. E
Bagno (op. cit.) vai mais longe, quando afirma que a prova mais eloquente do
desaparecimento de uma forma linguística aparece ao investigarmos a língua
falada pelas crianças e pelos adultos analfabetos! Então, será que os nossos clíticos
estão mesmo desaparecendo? Um fato bem interessante e sugestivo já q acontece
em nosso português: é o do objeto direto "Ø".
E o que vem a ser isto? Em
vez de usarmos pronomes pessoais para indicar o complemento, não usamos nada, é zero, deixamos ao interlocutor
o trabalho de recuperá-lo. Bagno (op. cit.) diz que não é em toda língua que se
pode fazer isto.
-Você e encontrou as
chaves que procurava?
-Sim, achei elas na
escrivaninha.
-Sim, não achei "Ø"
(na escrivaninha.
Os
gramáticos normativos da língua portuguesa padrão determinam o seguinte quadro
de pronomes pessoais:
Pessoas do discurso
|
Pronomes pessoais do
caso reto
|
Pronomes oblíquos
átonos
|
Pronomes oblíquos
tônicos
|
Pronomes possessivos
|
1ª pessoa (singular)
|
Eu
|
Me
|
Mim, comigo
|
Meu, minha
|
2ª pessoa (singular)
|
Tu
|
Te
|
Ti, contigo
|
Teu, tua
|
3ª pessoa (singular)
|
Ele/Ela
|
Se, o, a, lhe
|
Si, consigo, ele, ela
|
Seu, sua
|
1ª pessoa (plural)
|
Nós
|
Nos
|
Nós, conosco
|
Nosso, nossa
|
2ª pessoa (plural)
|
Vós
|
Vos
|
Vós, convosco
|
Vosso, vossa
|
3ª pessoa (plural)
|
Eles/Elas
|
Se, os, as, lhes
|
Si, consigo, eles,
elas
|
Seus, suas
|
Então, de acordo com o disposto neste quadro,
frases consideradas corretas seriam:
· Faz
tempo que eu não o vejo por aqui.
· Eu a conheci quando trabalhávamos na
Secretaria de Educação.
· Nós
precisamos ajuda- lo.
Mas
o que ouvimos em geral é o seguinte:
· Faz
tempo que eu não vejo ele por aqui
· Eu
conheci ela quando trabalhávamos na
Secretaria de Educação.
· Nós
precisamos de ajudar ele.
Penna
(1998) se dispôs então a estudar a natureza e a origem do pronome ele, chegando à conclusão de que, no
latim, havia apenas dois pronomes pessoais, os correspondentes aos nossos eu e tu/ nós e vós. A terceira posição veio a ser ocupada pelo
demonstrativo latino ille. Essa inovação, ou seja, a
implementação de um demonstrativo para ocupar a terceira posição ao lado dos
outros dois pronomes pessoais poderia ser a responsável pela não sedimentação semântica,
sintática e morfológica, por um lado do ele e suas flexões como caso reto
apenas - pois ele se estende ao acusativo e às outras funções sintáticas - e,
por outro lado, do o e suas flexões como objeto direto.
Portanto,
é preciso muito cuidado em se tachar de errado um uso linguístico. Cagliari
(1999) nos ensina que “todas as variedades, do
ponto de vista estrutural linguístico, são perfeitas e completas entre si. O
que as diferencia são os valores sociais que seus membros têm na sociedade”. E
completa dizendo que certo e errado são conceitos pouco honestos que a
sociedade usa para marcar os indivíduos e classes sociais pelos modos de falar
e para revelar em que consideração os tem.... Essa atitude da sociedade revela
seus preconceitos, pois marca as diferenças linguísticas com marcas de
prestígio ou estigma. Isso é grave, não?
De
todo modo, precisamos deixar de lado os preconceitos e entender, como fazem
Naro e Scherre (2007), que o importante frisar que o português brasileiro e o
português europeu, embora tenham semelhanças inquestionáveis, apresentam também
diferenças inquestionáveis, as quais necessitam de ser entendidas à luz do
contexto linguístico-social que está em cada uma das comunidades de fala. O
falante sabe muito bem se comunicar e faz isto em qualquer registro.
REFERÊNCIAS
1.
AZEREDO, José
Carlos. Gramática Houaiss da língua portuguesa. 2. ed. São
Paulo: Publifolha, 2008.
2.
BAGNO, Marcos. Não é errado falar assim! Em defesa do
português brasileiro. São Paulo: Parábola Editorial, 2009.
3.
CAGLIARI, Luiz Carlos. Alfabetização
e linguística. São Paulo: Scipione, 1999
4.
HOUAISS, Antônio
e VILLAR, Mauro de Salles. Dicionário Houaiss da língua portuguesa. Rio de
Janeiro: Objetiva, 2001.
5.
MATTOSO CÂMARA
JR. História e Estrutura da Lingua
Portuguesa.
2* ed.. Rio de Janeiro: Padrão, 1976.
6.
NARO, Anthony
Julius; SCHERRE, Maria Marta Pereira. O conceito de transmissão linguística
irregular e as origens estruturais do português brasileiro. In: Naro, Anthony
Julius; SCHERRE, Maria Marta Pereira Origens
do português brasileiro (Orgs.). São Paulo: Parábola Editorial, 2007.
7.
PENNA, Heloisa
Maria Moraes Moreira.1998. Emprego do pronome
tônico de terceira pessoa em função acusativa no português: mudança ou retenção?
Dissertação. (Mestrado em Linguística), Universidade Federal de Minas Gerais,
Faculdade de Letras. Disponível em: < http://www.bibliotecadigital.ufmg.br/dspace/bitstream/handle/1843/BUBD-9D8G4U/dissertacao_heloisamariamoraesmoreirapenna.pdf?sequence=1>. Acesso em:
13 nov. 2018.
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