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O marmelo como sinal de amor na segunda Bucólica de Virgílio


O MARMELO COMO SINAL DE AMOR NA SEGUNDA BUCÓLICA VIRGÍLIO

 


 
O marmelo, fruto do marmeleiro (Cydonia oblonga), à semelhança do pêssego, tem a casca aveludada, recoberta de leves pelos.  Já era conhecido na Grécia antiga, onde a variedade mais apreciada vinha da Cidônia - em grego antigo  Κυδωνία Kudônía e em latim Cydonea - região de Creta, situada no noroeste da ilha. Era chamado de Mela Cydonea, ou seja, « maçã de Cídon »; daí o nome científico do gênero, « Cydonia », atribuído atualmente ao marmeleiro.

Afrodite (Vênus em Roma), deusa do amor, era representada com um marmelo na mão direita.


 

 
E na Bíblia também encontramos referência a esta fruta:

“Sejam os teus seios para mim como cachos de uva e a fragrância do teu hálito como a dos marmelos(…)”- lê-se na Bíblia (in Cântico-7,9)

 

 Na Roma antiga, era costume o noivo dar à noiva, no dia do casamento, um fruto de marmelo como símbolo de amor! Era também hábito colocar marmelos ao pé das estátuas dos deuses. É o que nos ensina Plínio, o Velho, em sua Naturalis Historia, ao falar das várias espécies de marmelo.

 Todas estas espécies se põem nos quartos de dormir, onde se fazem as saudações, até mesmo nos quartos dos homens: são colocadas sobre estas testemunhas de nossas noites, as estátuas que aí se encontram. (Livro XV)

Na sua Segunda Bucólica de Virgílio, no verso 51, Córidon inclui frutas na sua lista de presentes para Aléxis: ipse ego cana legam tenera lanugine mala, ou seja, eu mesmo colherei [para ti] maçãs claras com lanugem branca.

A expressão cana mala – maçãs claras – conheceu diferentes modalidades de tradução nesta Bucólica, indo de maçãs a maçãs claras, maçãs douradas e quiçá outras maneiras.  A bem dizer, não se trata das maçãs de ouro, ainda hoje conhecidas na França como pommes golden, mas de maçãs claras e lanuginosas. O autor deve certamente ter querido referir-se aos marmelos, conhecidos na Grécia antiga como maçãs de Cídon, frutos dedicados a Vênus (Afrodite), vistos como o emblema da felicidade e do amor. Ademais, maçãs não costumam apresentar pelos, embora haja as que são de cor clara.

Sérvio [i]·, comentarista da obra de Virgílio, explicita bem isso ao comentar o verso supracitado:

Mala dicit Cydonea, quae lanuginis plena sunt: sed non praeter obliquitatem nam ut in Aeneide diximus, apud Cretenses infamiae genus iuvenibus fuerat non amatos fuisse, et verecunde rem  inhonnestam supprimit, quam Theocritus aperte commemorat.

Traduzindo:

[Virgílio] descreve marmelos, pois estes têm pelos; no entanto, não ultrapassa a ambiguidade, tal como apontamos no comentário sobre a Eneida[ii]. Entre os Cretenses, seria desonroso para os jovens não serem amados e [Virgílio] prudentemente não apresenta o aspecto vergonhoso que Teócrito[iii] enaltece abertamente.

 

Boyd, professora de Latim e Grego, membro do Board of Directors of the American Philological Association,  diz que dois pontos neste comentário merecem atenção. O primeiro indica que Sérvio

 [...] identifica o fruto escolhido por Córidon como sendo a Cydonea, ou seja, o marmelo, pois está coberto de pelos (mala lanugine tenera). Esta identificação é sem paralelos, apesar de, em fontes antigas, nas quais existem discussões sobre os vários tipos de lanugo [penugem dos frutos], Plínio menciona uma fruta com lanugem, lanatum, que só cresce em Verona, e observa que esses pelos aparecem também numa certa casta de marmelos (strutheum) e no pêssego (Persicum): lanugo ea obducit, strutheis quidem Persicisque plurima

O segundo comentário diz que

 

                            [...] há um duplo sentido nas palavras tenera lanugine mala, pois Cydonea mala (marmelo) lembra Creta, e é notória a reputação dos cretenses quanto à homossexualidade: três malum é um presente de amor comum ou um sinal; frutas cobertas de pelos ( tenera lanugine mala) são um presente apropriado para um jovem, cuja barba apenas começa a despontar (tenera lanugine malae, sendo mala,-ae as maçãs do rosto). Assim, apesar de não estar muito patente a razão que leva Sérvio a identificar os pelos citados por de Córidon como Cydonea, a conclusão a que este raciocínio o leva é bastante provável: et verecunde rem  inhonnestam supprimit [ e discretamente não apresenta o aspecto vergonhoso].

É sabido que, em Creta (civilização minoica), a homossexualidade era um rito de passagem, uma etapa necessária entre a infância e a idade adulta. (http://homofobiabasta.wordpress.com/a-historia-da-homossexualidade/)

A educação dos meninos atenienses se dava através de laços de amizade e prática homossexual com seus mentores. Um cidadão que não exercesse a adoção de jovens, e se encarregasse de sua educação, era acusado de omissão em seus deveres como cidadão. Era uma obrigação social tão importante quanto pagar impostos. Os meninos após os 12 anos de idade, nunca abaixo dessa idade, procuravam um adulto para sua educação. Com a aprovação da família e do garoto, este praticava sexo homossexual passivo, até completar seus 18 anos de idade, com o mentor, o qual lhe ensinava tudo o que sabia sobre a vida. A partir de então, tornava-se ativo e deveria ser mentor de outro jovem para, posteriormente, casar-se, próximo a completar 25 anos de idade. Obviamente, muitos continuavam com a prática homo. Homens para o prazer, mulheres para a procriação, dizia a regra social da época. (http://herycon.blogspot.com.br/2011/10/homossexualidade-na-historia-da.html)

                   

                         Virgílio, pois, não chega a expressar explicitamente o simbolismo homossexual, através do marmelo, em seu verso nº 21 da Segunda Bucólica. Usa de um jogo de palavras com a palavra mala. Poderíamos dizer que se trata de uma metáfora, posto que esta faz uma transferência de sentido de um conceito a outro. E como explica Othon Garcia, citado por Ivone Rebello, em seu trabalho O discurso poético- metáfora e intertextualidade, a metáfora “consiste em dizer que uma coisa (A) é outra (B), em virtude de qualquer semelhança percebida pelo espírito entre um traço característico de A e o atributo predominante, atributo, por excelência, de B, feita a exclusão de outros secundários por não convenientes à caracterização do termo próprio A”.
A metáfora consiste, portanto, em retirar uma palavra de seu contexto convencional (denotativo) e transportá-la para um novo campo de significação (conotativa), por meio de uma comparação implícita, de uma similaridade existente entre as duas.

 Foi exatamente o jogo de palavras que fez Virgílio. Primeiramente com a palavra mala, a fruta maçã e as maçãs do rosto. Depois, com a expressão lanugine  tenera, levando-nos a pensar nos pelos do marmelo e nos pelos da barba que se iniciam no rosto dos jovens adolescentes. Ladino esse magnífico poeta!

 

Referências bibliográficas.

 


2.     REBELLO, Ivonne da Silva.  O discurso poético - metáfora e intertextualidade. Disponível em: http://www.filologia.org.br/ixcnlf/11/12.htm. Acesso em 30/08/2014.


 



[i] Mário Sérvio Honorato ou Mauro Sérvio Honorato, mais conhecido como Sérvio, era um gramático pagão[ do final do século IV d.C., com a fama, em sua época, de ser o homem mais instruído de sua geração na Itália. Foi autor de um livro de comentários sobre Virgílio, In tria Virgilii Opera Expositio, o primeiro manuscrito impresso em Florença, por Bernardo Cennini, em 1471.
 
[ii] Ao mencionar a reputação dos cretenses relativamente à homossexualidade juvenil, Sérvio relembra o comentário que ele fizera anteriormente sobre o verso 325 do Canto X da Eneida. Nesse verso, Virgílio descreve dois jovens  rútulos, um dos quais Enéas mata, que se amavam.
 
[iii] Teócrito foi o poeta grego de maior destaque no período helenístico. Ele influenciou fortemente a poesia bucólica posterior, como a de Virgílio e a poesia árcade. Mas a poesia de Teócrito é natural e realista, ao contrário da poesia posterior, grandemente idealizada.

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