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Nossa língua


CORRUPÇÃO

Ronaldo Legey, em 23/11/2014.

 

Chamou-me a atenção, hoje, o artigo de Carlos Heitor Cony, publicado na Folha de São Paulo, intitulado “O DNA da corrupção”. Nele, o autor diz o seguinte:

 Já tivemos a saúva como inimigo preferencial. Ela não acabou com o Brasil, mas fez o que pôde. [...]. A saúva foi para o banco dos reservas [...], mas a titular da posição, muito mais maléfica que a saúva, é a corrupção que faz parte do nosso DNA.

Basta que consultemos jornais, revistas, TVs e Internet para nos darmos conta de que esta palavra – e todas as de sua família – está na ordem do dia.

O dicionário HOUAISS nos dá as seguintes indicações para o termo:

Substantivo feminino

1      deterioração, decomposição física de algo; putrefação

Ex.: c. dos alimentos

2      modificação, adulteração das características originais de algo

Ex.: c. de um texto

3      Derivação: sentido figurado.

depravação de hábitos, costumes etc.; devassidão

4      ato ou efeito de subornar uma ou mais pessoas em causa própria ou alheia, ger. com oferecimento de dinheiro; suborno

Ex.: usou de c. para aprovar seu projeto

5      uso de meios ilegais para apropriar-se de informações privilegiadas, em benefício próprio

Ex.: é grande a c. no país

 

E como é que esta palavra, que também apresenta a forma corrução, chegou à nossa querida língua portuguesa, a “última flor do Lácio inculta e bela” cantada por Olavo Bilac?

Pois bem! Vamos recordar algumas coisas importantes para compreender tal fato.

Sabemos que o português - uma das chamadas línguas neolatinas ou românicas - tem sua origem basicamente no latim, porém, não necessariamente no belo e difícil latim clássico, literário, que encontramos nos textos dos grandes escritores como Virgílio, Horácio, Cícero e outros.

O latim que deu origem à nossa língua era o falado pelas pessoas comuns, no dia a dia, nas mais diversas interações, o chamado latim vulgar. Ele chegou à Península Ibérica, quando os romanos, por volta de 218 a.C., aí desembarcaram. Era a época das Guerras Púnicas no norte da África. Os romanos dão cabo dos cartagineses no ano 209 e empreendem então a conquista da Península. E em todos os territórios que conquistavam,com a força do dominador, implantavam a sua língua, a qual não era, por óbvio, o belo latim clássico, mas uma língua falada pelos colonizadores e a soldadesca que os acompanhava.Todos os povos da Península, exceção feita para os bascos, que resistiram e mantiveram seu idioma, adotaram o latim como língua e, mais tarde, todos abraçarão também o cristianismo. Esse latim falado afasta-se do latim padrão escrito e, nas colônias, começa a se diferenciar sob a influência da língua falada pelos povos conquistados e pela influência dos superestratos de outros povos conquistadores que também passaram pela Península: povos germânicos, eslavos árabes entre outros. Aos poucos, as comunidades anteriormente sob o jugo do Império desenvolvem seus dialetos ao ponto de não serem mais compreensíveis entre si, e de não se identificarem mais com o latim, dando origem a línguas diferentes.

No território conquistado, a romanização fez-se de forma rápida e completa. Para podermos ter uma ideia de como algumas palavras do latim clássico eram pronunciadas no latim vulgar, vale uma consulta ao interessante documento anônimo Appendix Probi, do século IV d.C.,  que apresenta um catálogo com formas consideradas incorretas de latim  e que deviam ser evitadas.

  • speculum non speclum

A queda da vogal u na forma clássica speculum resultava em speclum, que já antecipa a forma do português “espelho”, com o acréscimo do e- inicial para evitar sílaba iniciada por sp e com a mudança regular de cl em lh por um processo de palatalização.

  • calida non calda

A queda da vogal pós-tônica –i- parece ser comum no léxico do latim vulgar e vai ser produtiva na passagem do latim para as línguas românicas. Em português, mantemos “calda” diretamente do latim vulgar calda, mas com mudança de sentido (cálida> calda significam, ambos, o adjetivo “quente” em sua forma feminina).

  • Rivus non rius

Neste exemplo, vemos a perda da semivogal v (pronunciada, em latim clássico, como o w em “kiwi”), criando um hiato na forma vulgar da qual derivaremos “rio”.

E por aí vai.

Curiosamente, ainda que durante séculos esses dialetos fossem se desenvolvendo ao ponto da diferenciação linguística completa, o latim continuou a ser utilizado como língua padrão escrita, seguindo, na medida do possível os padrões do latim culto.

Há palavras, porém, que nos chegaram diretamente do latim clássico, mas não pela via popular. Vieram em época posterior à formação da base da língua que seria o português e, muito possivelmente, entraram em nosso vocabulário por via erudita, por meio do vocabulário religioso, o qual tinha como fonte o latim clássico e o grego.

É interessante lembrar que foi a Igreja que impôs, por exemplo, em data muito antiga, a terminologia cristã dos dias da semana: domingo, segunda-feira, terça-feira, quarta-feira, quinta-feira, sexta-feira, sábado. Das línguas românicas, a única que adotou tais designações foi o português, já que as outras línguas irmãs mantiveram os nomes de origem pagã: lundi = dia da Lua; mard i= dia de Marte; mercredi = dia de Mercúrio; jeudi = dia de Júpiter; vendredi = dia de Vênus.

Na língua portuguesa, a origem dos nomes dos dias da semana vem da Idade Média. O domingo, derivado do latim "dies Dominica", dia do Senhor, é considerado o último da semana para os cristãos. Ou seja, o sétimo, quando Deus descansou da criação do mundo. Era no dia da missa que havia maior aglomeração de pessoas e, por isso, os agricultores se reuniam em torno da igreja para vender seus produtos - o primeiro dia de feira. O dia seguinte, consequentemente, era o segundo, a segunda-feira. E daí por diante até chegar o sábado, cuja origem é o termo hebraico shabbatt, considerado o último da semana para os judeus.

Por via erudita, pois, nos deve ter vindo a palavra corrupção, cuja origem se encontra no verbete latino corruptionem, cujos significados, segundo o dicionário de latim Gaffiot, eram: alteração, decomposição estrago, perversão, depravação, sedução.

 Em Gramática Histórica, quando se quer indicar que uma palavra deu origem a outra, usa-se o símbolo >. Então, podemos escrever: corruptione(m) > corrupção. O –m final desaparecia habitualmente na passagem do latim para o português. Assim: rosa(m) > rosa; persicu(m) > pêssego etc. Também, quando queremos marcar que uma palavra se originou de outra, usamos o símbolo <: rosa < rosa(m); legível < legibilis etc.

Dizemos que as palavras são da mesma família, quando sua raiz é a mesma.

Tal como nós, as palavras também têm uma família. Observe-se o exemplo a seguir: sapato- sapateiro- sapatinho- sapataria. Elas têm então a mesma raiz, a mesma origem.

 Toda palavra tem um núcleo etimológico (núcleo de origem das palavras) que é a sua raiz que representamos, tal como na Matemática, pelo símbolo √. O termo raiz vem de uma metáfora botânica, mas na verdade talvez fosse mais adequado vê-lo como um caroço em volta do qual está uma fruta ou como uma semente de onde nasce a palavra.

A raiz da palavra corrupção está no verbo latino rumpo, rupi, ruptum, rumpere que significa romper,quebrar. Daí a raiz  rump- e sua outra rupt-.Então, da mesma família de corrupção, ou seja, com o radical  rump-,  temos: corrupto, corromper, corruptela, corruptível, corruptivo, corruptor,incorrupção, incorruptível etc.

Corromper vem do latim e é palavra formada com o acréscimo à raiz  rump- do  prefixo cum, que marca intensidade, dando origem ao verbo corrumpo, corrupi, corruptum, corrumpere que significa: estilhaçar,destruir, aniquilar,deteriorar, falsificar, alterar as ideias de alguém, ganhar alguém etc.

Esse radical rump-  também está em várias outras palavras palavras, umas muito obviamente, outras nem tanto:

  • erupção< eruptione(m): “sair rompendo tudo”;
  • interromper< interrumpere; “quebrar ao meio”
  • interrupção< interruptione(m), do particípio interruptus
  • rota< do francês route, da expressão rupta via, “caminho aberto, (cortando a mata)”;
  • rotina< do francês routine, “caminho muito frequentado”;
  • ruptura <ruptura(m)

 

 

 

Referências bibliográficas

  1. BASSO, Renato Miguel e GONÇALVES Rodrigo Tadeu. História concisa da língua portuguesa. Petrópolis, RJ: Vozes, 2014.
  2. CONY, Carlos Heitor. O DNA da corrupção”. Disponível em http://www1.folha.uol.com.br/colunas/carlosheitorcony/2014/11/1551851-o-dna-da-corrupcao.shtml>  Acesso em 24/11/2014.
  3. CUNHA, Antônio Geraldo da. Dicionário etimológico Nova Fronteira da língua portuguesa. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1982.
  4. HOUAISS, Antônio e VILLAR, Mauro de Salles. Dicionário da língua portuguesa. Rio de janeiro: Objetiva, 2009.
  5. VIARO, Mário Eduardo. Manual de etimologia do Português. São Paulo: Globo Livros, 2013.
  6. TESSYER, Paul. História da língua portuguesa: tradução Celso Cunha. São Paulo: Martins Fontes, 2014.

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