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Milhar, milhão, bilhão e que tais.




Por Ronaldo Legey

10/06/2017

Os milhares de crianças ou as milhares de crianças?

Boa pergunta. Esta é uma dúvida cada vez mais frequente - mas não para o corretor de ortografia e gramática do meu Office - que tem levado muita gente boa a se enganar na hora de fazer a concordância nominal conveniente. Na mídia televisiva então, repórteres e entrevistados de programas há que, por repetidas vezes, se equivocam, oferecendo-nos pérolas, já não tão raras assim, do tipo: duas milhões de mulheres, duzentas milhões de pessoas, trezentas milhões de visualizações, algumas milhares de armas, tantas milhares de mulheres e por aí vai. Possivelmente se deixam influenciar por numerais referentes a centenas, a partir de duzentos, os quais, por sua natureza adjetiva, concordam em gênero e em número com as palavras que determinam. É o que se pode constatar nos exemplos a seguir:

·       O trajeto de DUZENTOS quilômetros foi percorrido de ônibus até a entrada do sítio.

·       Mais de DUZENTAS emendas foram feitas ao projeto de reforma da Lei Trabalhista em sua tramitação na Câmara dos Deputados.

·       Cerca de SEISCENTAS pessoas assistiram ao espetáculo.

·       Você me deve SEICENTOS reais.


Entretanto, é preciso ter em mente que MILHAR, MILHÃO, BILHÃO etc., conforme nos ensina a Prof.ª Maria Helena de Moura Neves, em sua Gramática de usos do português, são numerais cardinais que têm natureza substantiva e, por isso mesmo, são empregados precedidos de numerais, artigos, pronomes demonstrativos, pronomes indefinidos e outros determinantes que concordam com estes substantivos e não com o adjunto preposicionado no plural que lhe vem depois:

·       Uma população de mais de um milhão de pessoas vive nesta cidade.

·       Aquele político recebeu propina de cerca de dois milhões de dólares.

·       Cerca de dois milhões de pessoas estão sem emprego.

·       Estes milhões de mulheres vêm de onde?

·       Ela herdou alguns milhões com a morte de seu tio.

 É comum, portanto, termos milhar, milhão, bilhão, trilhão etc., seguidos da preposição de + substantivo no plural. Isto, porém, não implica que os determinantes que os antecedem assumam o gênero dos substantivos que vêm depois da preposição de:

·       um milhão de crianças ( um determina o substantivo milhão)

·       dois milhões de crianças (dois determina o substantivo milhões)

·       um bilhão de mulheres ( um determina o substantivo milhão)

·       dois bilhões de mulheres ( dois determina o substantivo bilhões)

·       duzentos e oitenta milhões de pessoas ( duzentos e oitenta quantifica milhões)

E aí pode surgir a seguinte dúvida: por que então dizemos duas mil crianças e não duas milhões de crianças?

 É simples. MIL é um numeral cardinal, de natureza ADJETIVA, que concorda com a palavra cuja quantidade ele expressa: mil pessoas, duas mil crianças, dois mil homens. Já MILHÃO, de natureza substantiva, é do gênero MASCULINO e, por isso mesmo, o adjunto que o antecede deve ficar no masculino: dois milhões de crianças (e não duas milhões de crianças), os milhões de armas (e não as milhões de armas). Aí está a diferença!  Isto vale para milhar, bilhão, trilhão etc.

As cerca de trinta mil pessoas

                                                                            

Os cerca de três milhões de pessoas


E eis que, ao ler o artigo do jornalista, professor e membro da Academia Brasileira de Letras, Zuenir Ventura, publicado no GLOBO de 10/06/2016, levei um susto. Lá pelas tantas, o eminente autor se sai com a seguinte frase:

“ Não foi a mídia que inventou as balas perdidas, os arrastões, os tiroteios, as  milhares de crianças sem aula por causa dos tiroteios”. (VENTURA, Zuenir. A culpa não é da mídia. O Globo, Rio de Janeiro, p 19,10 jun. 2017).

Pensei: até tu, Zuenir? Será que sou eu o implicante que não aceita tal construção? Será que se trata de um brasileirismo? Não, não pode ser. Milhar é uma palavra do gênero masculino. Se alguém disser os milhar em vez de os milhares, dá para compreender o que se quer dizer, pois o plural em português é redundante: dois indica plural e o –s de milhar também. Por economia linguística, ocorre com frequência, sobretudo entre os falantes menos letrados, a supressão do –s final na forma de morfema de plural, já que a marca de plural se fixa no determinante: dois real, os livro, duas vez, os menino grande, as outra, essas garota de hoje etc. Trata-se, pois, de um fenômeno sociolinguístico. Contudo, não dá para considerar como sendo do gênero masculino uma palavra que é do feminino. Ninguém diz duas livros. Tal discordância fere o sistema e constitui erro sim.

Pois é! Já anteriormente, outro colunista, também do jornal O GLOBO, escreveu algo parecido em um artigo seu. Enviei-lhe e-mail contestando e recebi como resposta que a concordância estava sendo feita por atração, um tipo de silepse, de concordância “ad sensum”. Ledo engano!

Não é bem assim. O dicionário HOUAISS on-line reforça meu ponto de vista, dizendo que milhar, milhão, bilhão etc. são substantivos masculinos e que, por sua natureza substantiva, são empregados precedidos de outros numerais, artigos, pronomes demonstrativos, indefinidos etc. Diz ainda que o substantivo que os segue é precedido de preposição: um milhão de pessoas, aqueles e outros milhares de habitantes.

Observe-se, insisto, que os numerais cardinais substantivos milhar, milhão, bilhão etc. são variáveis em número: milhar/milhares, milhão/milhões, bilhão/bilhões, trilhão/trilhões, mas não o são em gênero. Assim, os seus determinantes quantitativos precisam ficar no masculino: os milhões de pessoas, alguns milhões de pessoas, estes milhões de pessoas e assim por diante.

Por isso mesmo, há tempos me venho batendo contra essa prática frequente de, nos jornais televisivos e até na mídia escrita, se colocar o adjunto nominal de milhar, milhão, bilhão e que tais no feminino, quando tais substantivos são seguidos da preposição de mais palavras femininas.

De acordo com Bechara (1999),

                 Os adjuntos de milhar, masculino, devem também ficar no masculino: Alguns milhares de pessoas se expõem ao sol do meio-dia. Os milhares de pessoas que estudam língua estrangeira não devem esquecer a materna. (p.205)

E ele destaca ainda que é de se evitar o erro “hoje comum algumas milhares de pessoas, as milhares de pessoas”.

Rodrigues (2016) também se preocupa com o assunto e afirma em seu livro que


A flexão de gênero sofrida pelos numerais um, dois e centenas acima de cem não resiste ao poder de milhão. Está errado falar em ‘duas milhões de assinaturas” ou “ quinhentas milhões de pessoas”. Prevalece o gênero masculino de milhão, como ocorre também com bilhão, trilhão e assim por diante. (p.202).

Ainda para confirmar o que sei a respeito destes numerais, enviei e-mail à Academia Brasileira de Letras, pedindo orientação. Responderam-me prontamente e reproduzo abaixo o texto a mim enviado:

Resposta : Bom dia! A orientação é seguir o que diz o grande mestre, acadêmico e gramático Evanildo Bechara que registra em sua gramática: "Milhar é um substantivo masculino e, portanto, não admite seus adjuntos postos no feminino a concordar com o núcleo substantivo feminino: Os milhares de pessoas (e não: as milhares de pessoas)." De nada, disponha.


A Prof.ª. Luana Castro que, pesquisando sobre o assunto, encontrei na Internet, nos oferece um sugestivo quadro que divulgo abaixo:



Milhares, milhões e bilhões são substantivos masculinos, portanto, os pronomes, artigos e numerais que os antecedem devem ser devidamente flexionados.

Espero ter sido útil.

Referências

1.      .BECHARA, Evanildo. Moderna gramática portuguesa. 37.ed.rev. e ampl. Rio de Janeiro:Lucerna,1999.

2.      BAGNO, Marcos. Gramática pedagógica do português brasileiro. São Paulo: Parábola Editorial,2011.

3.      CASTRO, Luana. Disponível em:< http://escolakids.uol.com.br/as-milhares-ou-os-milhares.htm> Acesso em: 10 jun. 2017

4.      HOUAISS, Antônio e VILLAR, Mauro de Salles. Dicionário Houaiss da língua portuguesa..Rio de Janeiro: Objetiva,2009.

5.       NEVES, Maria Helena de Moura. Gramática de usos do português.São Paulo: Editora UNESP,2000

6.      __________________________. Guia de Usos do português: confrontando regras e usos.São Paulo: Editora UNESP/2003

7.      RODRIGUES, Sérgio. Viva a língua brasileira: uma viagem amorosa, sem caretice e sem vale-tudo, pelo sexto idioma mais falado do mundo – o seu. São Paulo: Companhia das Letras,2016.

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