Pular para o conteúdo principal

Milhar, milhão, bilhão etc.....ainda!

 

Milhar, milhão, bilhão etc.....ainda!.

Ronaldo Legey

18/12/2020

 

 

É inquietante verificar que falantes de nossa língua, o português brasileiro, emitem frases como as que se seguem, seja na língua falada seja na escrita:

·         “Naturalmente faltou combinar com Dilma, que ainda se esguelha por aí a denunciar “ o golpe” que a derrubou e os golpistas que tramaram sua desgraça. E faltou combinar com as milhares (grifo nosso) de pessoas, militantes do PT ou simples saudosistas de uma era de crescimento econômico convencidas de que o golpe afundou o país na mais grave recessão de sua História". (Ricardo Noblat, O GLOBO, 06/11/2017)

·         “Fabricantes dizem que vão precisar de sete meses para entregar as 200 milhões grifo nosso) de seringas para imunizar os brasileiros”. (Ascânio Seleme, O GLOBO, 05/12/2020)

·         Trezentas milhões (grifo nosso) de vacinas” (Maria Beltrão, GLOBONEWS, 01/12/2020)

·         “[...]o assunto ficou esquecido nas milhares (grifo nosso) de páginas do processo”. (Vera Araújo e Chico Otavio. O Globo. P. 23,06/12/2020).

·         As cem milhões (grifo nosso) de doses [ de vacina] (Governador Eduardo Leite, Globonews em pauta, 08/12/2020)

·         “Ainda que ela receba sinal verde da Anvisa, haverá na primeira fase apenas 18 milhões de doses (das 46 milhões previstas) (grifo nosso) para imunizar populações [..] além de outras 4 milhões para o resto do Brasil. (O GLOBO, p.2, edição de 09/12/2020)

·         “Na conta do Ministério da Saúde, seriam necessárias 420 milhões (grifo nosso) de doses ao todo” (O GLOBO, id.).

 

Certamente há um equívoco generalizado da parte destes falantes, pois o Vocabulário Ortográfico da Língua Portuguesa (VOLP), publicado pela Academia Brasileira de Letras, indica que milhar assim como milhão, bilhão, trilhão etc. são substantivos do gênero masculino. Então, por que dizer ou escrever “as milhares de vacinas?  Trata-se de uma transgressão à norma linguística esperada, pois sendo do gênero masculino, milhar será determinado por adjuntos adnominais também no masculino: “os milhares de vacinas”, “alguns milhares de doses de vacina”, “muitos milhares de seringas”.

Sei lá o que deu nessa gente! Toda língua muda com o tempo, é um fato, mas no caso de milhar, milhão, bilhão etc. ainda não chegamos lá. Então o que leva o falante a cometer este tipo de engano? Só dá para fazer suposições, já que a regra gramatical em si é simples, porém, as pessoas a ignoram e acabam mesmo é na inadequação. É possível que isto se dê por um impulso de ultracorreção por parte do falante, ou seja, a preocupação excessiva com a forma correta o leva a um raciocínio gramatical falso e ele incorre numa baita agramaticalidade. Pode ainda ser que ele esteja confundindo o gênero de milhar, substantivo masculino, com mil que, como nos ensina o Prof. Sérgio Rodrigues, “é numeral e, por isso, artigo ou numeral que o acompanhe concordará com o substantivo: “AS MIL e UMA noites...”; “DOIS MIL candidatos compareceram à prova”; “DUAS MIL pessoas estavam na festa”.

Entretanto, é importante assinalar que um termo ou palavra de uma frase, isoladamente, não exprime qualquer informação sintática. É na frase que esta informação se dá, quando esta palavra se associa a outras:  “um milhão de doses”, “dois milhões de mulheres”, “alguns milhares de árvores”, constituindo o que em linguística se dá o nome de sintagma, a saber, um grupo de palavras constituindo uma unidade na frase. O linguista Bagno (2013) afirma que “os sintagmas se estruturam com um núcleo em torno do qual se colocam elementos à esquerda e à direita. Esse núcleo pode ser ocupado pelas seguintes classes de palavras: verbo, substantivo, adjetivo, advérbio, preposição”. Ele tem a seguinte configuração básica:

[DETERMINANTES]   [NÚCLEO]   [COMPLEMENTADORES]

 

 

 


                                                                                SINTAGMA

 

 

 

Então, em nosso sintagma um milhão de doses, temos o seguinte esquema:

[um ]  [milhão]   [de doses]

 

 

 


                                                                                SINTAGMA

 “Um”, à esquerda, é o adjunto adnominal determinante do núcleo “milhão”, o qual tem, à direita, o adjunto adnominal complementador de doses”. Convém observar que “um” não se refere a doses, mas a milhão. Qualquer outro determinante que se queira usar neste sintagma vai concordar com milhão: um milhão, outro milhão, aquele milhão etc. E se milhão estiver no plural, dois milhões, outros milhões, aqueles milhões etc. Na frase: “duzentos milhões de doses de vacina”, o adjunto adnominal continua determinando “milhões” e não “doses de vacina”. É para isto que o falante precisa estar atento. A concordância de milhar e milhão está relacionada ao gênero de tais substantivos. O Prof. Sérgio Rodrigues, em seu site Dicas de Português, nos diz o seguinte:

MILHAR e MILHÃO são substantivos masculinos: “A maioria DOS SEUS MILHARES de fãs são meninas de dez a 14 anos de idade”; “NOS MILHARES de linhas que li, não encontrei nada que me interessasse”; “OS SEUS MILHÕES de fãs são mulheres”; “Havia UM MILHÃO de pessoas e DOIS BILHÕES de dúvidas...”; “OS DOIS MILHÕES de mulheres...

MIL é numeral, por isso, artigo ou numeral que o acompanhe concordará com o substantivo: “AS MIL e UMA noites...”; “DOIS MIL candidatos compareceram à prova”; “DUAS MIL pessoas estavam na festa. ”

O próximo aspecto é: se estamos fazendo referência à concordância nominal, temos que estar cientes de que essa se traduz pela adaptação em gênero e número do substantivo (no caso, os dois citados: milhar e milhão) aos seus respectivos modificadores: artigos, pronomes, adjetivos e numerais.

Não sei se há sucesso possível nesta batalha de confusão de gêneros gramaticais, mas o importante é realmente não arrefecer. À luta, pois!

 

REFERÊNCIAS

 

1.    BAGNO, Marcos. Gramática de bolso do português brasileiro. São Paulo: Parábola Editorial, 2013.

2.    RODRIGUES, Sergio. Ponto final. Disponível em:<http:// www.português.br>. Acesso em: 18 dez. 2020.

 

Ao tomarmos a palavra milhão, vamos verificar que se trata de um numeral de natureza substantiva, ou seja, só é substantivo, em português, a palavra que se deixa anteceder por determinantes: um milhão, o milhão, alguns milhões, dois milhões etc.  E em se tratando de substantivo masculino, o determinante também estará no masculino.

 

 

 

 

 

Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

ALVO OU ALVOS? PÚBLICO-ALVO OU PÚBLICOS-ALVOS?

    ALVO OU ALVOS?   PÚBLICO-ALVO OU PÚBLICOS-ALVOS?   Ronaldo Legey 15/09/2020   “Eles foram alvo de denúncia ou alvos de denúncia”.   Esta é a questão. Se nos guiarmos pelo que se ouve de repórteres no telejornalismo ou em outros meios de comunicação usados na mídia, continuaremos em dúvida. Basta ver, por exemplo, o texto abaixo, colhido no GLOBO: de 15-09-2020: Pedro Fernandes, secretário estadual de Educação, é preso por suspeita de chefiar esquema de corrupção; ex-deputada Cristiane Brasil é procurada. Os dois são alvos de uma operação que investiga supostos de desvios em contratos de assistência social (O GLOBO, 11-09-2020)   Aos meus ouvidos ‘alvos’ soa estranho nesta frase, pois nos bancos escolares já me haviam ensinado o que muito claramente diz o Blog da Dad :   “Na semana do Oscar, indicados são alvos de críticas”, escreveu o portal Uol. Eta pegadinha! Deixe no singular o substantivo abstrato que, depois de...

IDIOTISMOS E OUTROS DIZERES NO PORTUGUÊS E NO FRANCÊS

                                                           Idiotismos, frases feitas, clichés, expressões fixas, expressões cristalizadas, expressões congeladas, expressões idiomáticas, aforismos e outros dizeres no português e no francês.                                                             Ronaldo Legey                                                                 ...

É erro mesmo?

É ERRO MESMO? Estudo realizado por Ronaldo Legey 15/11/2018   Quando garoto, bastava dizer “ eu vi ele ” que logo recebia a cuidadosa correção de minha mãe: “Não se diz ‘eu vi ele’, mas ‘eu o vi’”. Bons e saudosos tempos! A lição foi aprendida e, mais ainda, posteriormente reforçada pela escola. Esta nos ensinou que a gramática da Língua Portuguesa estabelece o uso do pronome reto exercendo a função de objeto. Assim sendo, ele , ela , eles, elas , que são pronomes do caso reto, não devem ocupar a função acusativa, ou seja, não podem funcionar como objeto direto, pois esta é uma função própria dos pronomes pessoais do caso oblíquo. Pois é, mas as línguas são caprichosas, são um sistema vivo e dinâmico e, não raro, apresentam fenômenos que se opõem às regras gramaticais que nos são ensinadas. Simples assim. Caso flagrante é o do uso dos pronomes do caso reto ele e suas flexões como objeto direto. Cansamos de ouvir por aí: “Não vejo ele faz tempo”; “Eu quis el...