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Pronomes oblíquos:  desafio para professores de línguas estrangeiras no Brasil

Ronaldo Legey

Dezembro de 2020

 

Muitos estrangeiros radicados no Brasil se propõem ensinar línguas estrangeiras a a nossos compatriotas, mas têm de enfrentar desafios. Um deles, que não é pequeno, é a dificuldade que seus alunos apresentam em aprender o uso adequado dos pronomes pessoais oblíquos na língua que estão estudando.

É um fato, mas tem explicação. Os nativos das línguas daqueles que as ensinam, já aprenderam desde pequenos o uso destes pronomes, mas para os falantes de português brasileiro o caso é outro. As regras gramaticais do português a que fomos submetidos em nossa infância, tanto em família quanto na escola, obedeciam a critérios exógenos, importados de Portugal e que não combinam, segundo o linguista Bagno (2013), com o senso linguístico brasileiro. O português que aprendemos socialmente e praticamos em nosso quotidiano tem lá suas tendências e obedece a uma norma diferente daquela que a escola nos ensinou. Trata-se de uma língua inexoravelmente em constante transformação que, por isso mesmo, fere a rígida gramática que aprendemos. O francês Claude Duneton, em artigo publicado no jornal Le Figaro, ressalta que “uma língua não é simplesmente [...] o “reflexo” da sociedade que a fala; ela constitui esta sociedade, ela a contém”. É isso aí. O português brasileiro do dia a dia obedece a uma norma linguística endógena, que “já tem uma gramática própria, com regras radicalmente distintas das que governam o português europeu” (Bagno 2013). Simples assim. Tanto que, em provas e exames de concursos, quando se quer avaliar se o aluno ou o concorrente conhece as normas tradicionais da língua portuguesa, costuma-se indicar que a resposta deve atender à chamada “norma padrão”.

Assim, diante da pergunta: “Tu veux lire ce livre”, feita a um aluno por um professor de francês, é bem provável que o aluno brasileiro responda: “Oui, je veux” e não o esperado “Oui, je le veux”. Isto acontece porque, em nossa sociedade brasileira, quando alguém nos pergunta como: “Você lavou as mãos? ”, as respostas mais comuns serão: “ Sim, lavei”; “Lavei”. Quase ninguém, mesmo os mais escolarizados, dirá: “Sim, eu as lavei”; “Lavei-as”, pois isto soará como pedante, embora seja a regra imposta pela gramática portuguesa.

Tenho amigos estrangeiros que me dizem: “ Os brasileiros não completam a frase com os pronomes adequados; quando falam “lavei”, simplesmente ficamos sem saber o que foi lavado”. Não, não há por que se exasperar, há, sim, que se entender ser esta a realidade do português brasileiro, língua que, há muito, se desgarrou daquela falada na antiga metrópole. Bagno (2009) nos ensina que nós, brasileiros, ao respondermos tão simplificadamente a estes tipos de perguntas, não usamos os pronomes oblíquos, mas deixamos o lugar do objeto vazio para ser preenchido por nosso interlocutor:

A: - Você achou o livro que eu te recomendei?

B: - Achei, comprei, já li, adorei, emprestei para o Valdir, que também leu e adorou e disse que vai dar de presente para todos os amigos.

É assim que funciona e cabe ao professor de línguas estrangeiras não se escandalizar e achar que os brasileiros falamos errado. Ele precisa entender que esta é a realidade da língua que, um dia, desembarcou de Portugal aqui em nossas plagas, se foi transformando ao longo do tempo, seguindo nova índole, como sói acontecer com qualquer língua, quando transplantada para outro espaço que não o de sua própria pátria. Exemplos há de sobra: o francês falado no Quebec, o inglês dos Estados Unidos e, transformação máxima, o latim que deixou de ser falado, deu origem às línguas neolatinas como o português, o francês, o espanhol, o italiano, o romeno e outras mais.

 

Ao ensinar o uso dos pronomes oblíquos em uma língua estrangeira, não adianta muito fazer explicações gramaticais, pois o aluno vai entendê-las, todavia influenciado pelos substratos de sua própria língua, continuará a não empregar os pronomes como pede a norma da língua que está aprendendo. Ele vai falar como o faz em sua língua. E vai levar algum tempo para se adaptar à norma da língua estrangeira até que se dê a epifania e a norma seja naturalmente internalizada. Há que se insistir, que não capitular, pois  importante é incentivar o uso através de exercícios até que se dê o desenvolvimento pleno da competência comunicativa que se está buscando. É fundamental que se dê primeiro a apreensão do funcionamento das estruturas e das regras da língua estrangeira e somente depois, a reflexão sobre a língua. Isto significa que a gramática da língua estrangeira se ensina, antes de mais nada, pela apropriação dos elementos da língua e, em seguida, por sua análise.

 

REFERÊNCIAS

 

1.    BAGNO, Marcos. Não é errado falar assim: em defesa do português brasileiro. São Paulo: Parábola Editorial, 2009.

2.    BAGNO, Marcos. Gramática de bolso do português brasileiro. São Paulo: Parábola Editorial, 2013.

3.    DUNETON, Claude. Une langue doit évoluer pour être vivante. Le Figaro, Paris: 24 nov. 2017. Disponível em: https://www.lefigaro.fr/langue-francaise/expressions-francaises/2017/11/24/37003-20171124ARTFIG00013-une-langue-doit-evoluer-pour-etre-vivante.php. Acesso em: 15 dez. 2020.

4.    WALTER, Henriette.  L’aventure des langues em occident. Paris : Editions Robert Laffont S. A., 1994.

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