As agruras de um
tradutor
Ronaldo Legey
27/07/2020.
Il traduttore è un traditore
[ O tradutor é um traidor]. Com esta expressiva
combinação de palavras que se aproximam por similaridade fônica, mas com
sentidos diferentes, conhecida em estilística por paronomásia, os italianos nos dizem que até mesmo
as melhores traduções podem modificar o significado original de um texto. Nossa, que perigo! É um verdadeiro fantasma assombrando os tradutores,
principalmente quando estão diante de uma palavra ou locução que não tem
correspondência exata na língua de chegada.
É o que aconteceu a um amigo, de
nacionalidade italiana, que viveu por muito tempo na França e se instalou no
Brasil há muitos anos. Atualmente, ele se dedica a dar aulas de sua língua materna
e também de francês. Ele fala bem o português brasileiro, porém, vez por outra,
precisa de socorro, sobretudo na tradução de locuções que compõem a rica
fraseologia de nossa língua. Tais locuções, também conhecidas por « expressões
idiomáticas », são itens lexicais complexos que geram em qualquer língua dificuldades para os
falantes não nativos e, até mesmo, para os próprios nativos. O sentido total de
tais locuções não corresponde à combinação do sentido dos elementos que as
compõem. E aí mora o perigo.
Certa
vez, este meu amigo me pediu um correspondente para a expressão “chorar as pitangas”, encontrada numa
crônica de Martha Medeiros que ele usaria em suas aulas de francês. Estremeci,
pois sabia que o termo “pitanga” não frequenta a língua francesa. Consultado o
Wikipédia, ele traduz o nome da saborosa frutinha por “cerise de Cayenne”, mas isto não dá para forçar a barra e traduzir
“chorar as pitangas”, que tem o
sentido de “se queixar”, ” reclamar”, “chorar miséria”, por “pleurer
les cerises de Cayenne”. Procurando mais na utilíssima Internet, cheguei ao
site São Paulo Accueil, considera a dita locução como sendo equivalente
a “chorar lágrimas de sangue” e a
traduz por “pleurer des larmes de sang”.
Baseia-se no fato de que a pitanga, por ser
uma fruta vermelha, seria como a lágrima de sangue. Quebra o galho, mas não é suficiente.
E mais recentemente,
meu amigo me trouxe mais uma destas locuções-problema: a nossa tão comum “quebrar a cara”. Esta locução nos faz
realmente “quebrar a cara” se quisermos vertê-la para o francês. Ela tem dois
sentidos: um, de “aplicar a alguém um corretivo, dando-lhe um soco no rosto”, “esbofetear”,
“espancar” e é facilmente traduzida por “casser
la gueule à quelqu’un”; o outro sentido, de “sofrer decepção”, “dar-se mal”, “falhar”, “errar”
é mais difícil de ser transposto para o francês. Há um site, o HRidiomas, que nos explica haver na língua tupi a palavra pitanga, significando “vermelho”. Assim, chorar as pitangas seria o mesmo que
verter muitas lágrimas, até os olhos ficarem avermelhados.
Então, comendo pelas beiradas, pode-se chegar a algo como: “avoir du mal a s’en sortir”, “être mal pris”, “décevoir”, “tourner mal”, ”désillusionner”, “désenchanter”, “désappointer”, “se mettre le
doigt dans l'oeil", “se tromper” etc., mas aí já fugimos da locução
desejada, a qual fica ao gosto do freguês. Meu amigo preferiu usar a locução
bastante familiar “se foutre dedans”.
Vale, pois não há saída diferente.
Carvalho (2013), em um interessante
estudo sobre o ensino de locuções do português brasileiro para estrangeiros,
criou o quadro abaixo, no qual nos dá um exemplo das dificuldades que temos na
empreitada de traduzir locuções ou expressões idiomáticas:
|
Português |
Francês |
Locuções Idênticas |
Quebrar
o gelo [Estar]
com a pulga atrás da orelha |
Briser la glace Mettre la puce à l’oreille |
Locuções
similares |
À boca pequena Cabeça de vento |
De bouche à oreille Tête de linotte |
Locuções
diferentes |
Procurar
chifre em cabeça de cavalo Ver
com quantos paus se faz uma canoa |
Chercher midi à quatorze heure Montrer de quel bois on se chauffe |
Falsos
amigos |
Cavalo de batalha (Complicação,
dificuldade) Cara de pau (Pessoa insolente,
audaciosa) |
Cheval de bataille (Argumento
favorito, costumeiro) Tête de bois (Pessoa teimosa) |
Há casos em que a correspondência é
flagrante, como em quebrar o gelo/Briser la glace. Mas os falsos-amigos, ou
seja, palavras existentes no português e no francês
que se parecem na grafia e na pronúncia, mas possuem significados distintos.
Então, já que as locuções são itens lexicais complexos e que
nos trazem tantas dificuldades ao querermos transpô-las de uma língua para
outra, o jeito é pesquisar e muito para não nos tornarmos, nesta apaixonante e
difícil tarefa, um traduttore traditore.
REFERÊNCIAS
1.
CARVALHO,
Karine Costa Branco de. Brasileiro língua estrangeira. Memória apresentada como
exigência parcial do mestrado em didática de línguas. Universidade do Quebec em
Montreal. 2013.Disponível em:
https://core.ac.uk/download/pdf/20271063.pdf. Acesso em: 26 jul. 2020.
2. São Paulo Accueil. Disponível em:<https://www.saopauloaccueil.org.br/expressoes-populares-brasileiras-e-suas-origens/>.
Acesso em: 27 jul. 2020.
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