A nova cozinha nórdica
Meu primeiro contato com a cozinha nórdica se deu há dois anos, na Islândia, durante uma semana de inverno, quando eu provei desde baleias, renas e até o hákarl, uma iguaria tradicional da cozinha da Islândia, feita de carne de tubarão, que é deixada apodrecendo na terra durante dois meses e, depois, permanece secando um pouco mais.[A bebida recomendada? Um schnapps Brennivín (tipo de aguardente), carinhosamente apelidado de "morte negra"]. Esse prato nacional, com cheiro de amônia, passou a representar para mim o tipo de paladar estranho e enigmático que associei a viagens ao Atlântico Norte[i].
Então, quando fui passar um fim de semana prolongado em Copenhague, no mês passado, eu pensei que iria resistir aos lutefisk [prato feito à base de peixe (fisk) branco seco e soda cáustica (lut)] e aos arenques em conserva. Meu estômago embrulhava de medo, até vir a saber que o melhor restaurante do mundo está nesta cidade de conto de fadas. Uma pesquisa de prestígio, feita anualmente por críticos de gastronomia e “chefs” de cozinha, no início deste ano, considerou o restaurante Noma, aberto em 2003, pioneiro no conceito da nova cozinha nórdica, concedendo-lhe o primeiro lugar.
O título que agora unge o Noma[ii], dirigido pelo “chef’ René Redzepi, marca seu rito de passagem para o cenário gourmet do jantar dinamarquês. Quando da indicação do cobiçado prêmio, o júri declarou que "Copenhague já não é a última estação do metrô gastronômico." Não que a cidade fosse a última parada para aqueles que a conhecem: afinal, ela já reúne tantas estrelas no guia Michelin quanto Madri e Berlim e, ainda, tem mais estrelas que Amsterdam, Milão e Veneza. E, enquanto os países nórdicos tiveram um disparo ocasional na conquista de estrelas--- o Chez Dominique, na Finlândia, e na Suécia, o Mathias Dahlgren e o Oaxen Krog--- a cidade de Copenhague possui, sem dúvida, mais profundidade e variedade.
Com o cenário gastronômico aqui caminhando rapidamente para se tornar global, minha amiga Leigh e eu decidimos dedicar as primeiras 24 das nossas preciosas 48 horas em Copenhague para nos empanturrarmos com bobagens, começando pelas indicações de René Redzepi, o locavore[iii] chefe do Noma, que só usa ingredientes encontrados na região nórdica --- da Escandinávia, da Groenlândia e das Ilhas Farei---- exceção feita para os chocolates e o café. Os pratos tendem a ser pesados, com frutos do mar e carnes curadas, como, por exemplo, o peixe perca servido com frutinhas de sabugueiro cruas e lagostim salteado servido sobre uma pedra quente acompanhado de estranhos produtos importados, como uma peça dinamarquesa de macarrão e queijo misturados por precaução. Em seu laboratório de alimentos, situado num barco-casa flutuando canal abaixo, Redzepi faz experiências com ingredientes diferentes: por exemplo, um que ele chama de “cenoura vintage”[iv] e outro, o "caviar de batata”[v] .
O restaurante dispõe de apenas 12 mesas. Por isso não foi surpresa o fato de não conseguirmos uma reserva até pelo menos por volta do “Dia dos Namorados”. [vi], um termo difícil de traduzir, algo como o aconchego de um bom vinho, velas e boa companhia. Eu estava realmente ansioso por conhecer aquele local, situado num antigo armazém do século XIX, numa construção retilínea em um dos canais da icônica Copenhague. Noma é lcélebre por sua personificação do conceito dinamarquês de hygge
Para o almoço, decidimos visitar o Herman, a elegante morada do chef Thomas Herman, na devastadoramente elegante Hotel boutique Nimb. Com vista para o Tivoli Gardens, o parque de diversões da cidade histórica, o restaurante vive lotado, na mesma medida do interesse das pessoas por sua comida. Na verdade, a refeição de sete pratos é quase que uma exclamação de surpresa, com pratos do tipo obras de demonstração, ao invés de itens de subsistência. A veia vanguardista do Herman se revela nos contatos íntimos e envolventes com o sabor, usando emulsões (pepino), gel (alga marinha) e até mesmo neve artificial (aspargos). Enquanto isso, a apresentação chega às raias do psicodélico: um salgadinho foi servido num pedaço de pedra polida que também funciona como uma colher gigante e a sopa, digna de uma nota de rodapé, dentro de uma vasilha que soltava fumaça de gelo seco durante vários minutos.
Após a refeição, que durou quase três horas, nós encontramos no Tivoli com Paulo, o celebrado chef Paulo Cunningham, das estrelas Michelin, abrigado em uma estrutura de vidro toda hygge. Ele tinha acabado de retornar de uma temporada de uma semana, como chef convidado, de um hotel de Xangai, e também estava no meio do lançamento de seu quinto livro. Mas o alegre britânico nos ofereceu um sorbet, marinado em azeite com ameixa preta, e privou o seu staff do jantar diário de alguns minutos para nos contar a história do tempo em que ele foi proibido de se aproximar de Bill Clinton em seu próprio restaurante. Ignorando a recomendação dos assessores do ex-presidente, ele iniciou uma conversa com Clinton e lhe deu um dos seus livros de receitas. Semanas mais tarde, Clinton lhe enviou uma nota manuscrita, dizendo que ele estava recebendo o livro traduzido para o Inglês por sua equipe.
Para o jantar, Leigh e eu fomos até o fantástico mundo de Mielcke & Hurtigkarl, um refinado estabelecimento, possivelmente único no mundo, decorado com baratas no papel de parede, com indicações alucinógenas para os banheiros e uma trilha sonora de três horas, tendo, entre outros ruídos, zumbido de insetos. Mielcke Jakob, um dos dois chefs que dirigem a casa, tal como Herman gosta de fazer experiências. Um dos nossos pratos foi uma cenoura "patch" (manchada), na qual a "mancha" de borra de café era comestível, embora eu literalmente não recomende experimentar a sugestão comestível.
Mas o estranho era acertar ou errar: enquanto o ravióli de abóbora com ouriços do mar foi uma combinação surpreendentemente boa, a beterraba entrou em choque com o chocolate branco com que foi servida. E pelo preço do jantar para duas pessoas (700 dólares, incluindo os vinhos), você pode muito bem comprar os ingredientes e ir com empolgação para sua própria cozinha, com dinheiro de sobra para novos utensílios e panelas. Somente na noite seguinte, quando revisitamos o Tivoli em toda a glória do Natal, é que encontramos finalmente algo que pudemos entender: a pastelaria dinamarquesa.
[i] Hákarl ou kæstur hákarl (significando tubarão e tubarão podre, em islandês) é uma iguaria tradicional da culinária da Islândia. Faz parte do Þorramatur, o prato nacional do país.
O tubarão utilizado, o tubarão-da-groenlândia, é, em si, venenoso, quando se encontra fresco, produzindo efeitos semelhantes a uma embriaguês extrema, devido a uma concentração elevada de ácido úrico. Mas, pode ser consumido após cozedura em várias águas ou após ser enterrado para putrefacção durante vários meses, sendo exposto a vários ciclos de congelação e descongelação.
Possui um cheiro intenso de amoníaco, não muito diferente de muitos produtos de limpeza. É normalmente servido em cubos com um palito e consumido acompanhado por cálices da aguardente local, denominada brennivín. O consumo de hákarl é frequentemente associado a robustez e força.
Trata-se em parte de um alimento de gosto adquirido, que necessita de algum tempo para a habituação. Aconselha-se aos principiantes que tapem o nariz ao tentarem ingerir o primeiro pedaço, de forma a evitarem o surgimento de vómitos, devido ao odor intenso.
Pode possuir uma cor avermelhada ou branca. O hákarl, em especial a variedade vermelha, é considerado de digestão fácil para pessoas com úlceras.
[ii] NOMA: No, de nórdico e Ma de Mad, que significa alimento em dinamarquês.
[iii] LOCAVORE: pessoa interessada em comer alimentos produzidos localmente.
[iv] CENOURA VINTAGE: uma cenoura bem grande que passou muito mais tempo no solo do que de costume e que seria intragável crua. Ao assá-la em uma espessa manteiga de cabra em temperatura bem baixa por bastante tempo, ela produz algo substancioso e surpreendente, cujo sabor mistura o gosto da cenoura, da carne, do nabo e de nada muito familiar. O termo vintage aplica-se mais ao vinho.
[v] CAVIAR DE BATATA: Recentemente Redzepi descobriu que uma batata prestes a apodrecer na terra faz brotar um conjunto de batatinhas a seu redor, e que essas parasitas satélites são incrivelmente macias e têm o aroma da avelã. Desde então ele está tentando convencer um fazendeiro local a não arrancar as batatas como de costume. Ele diz: “É como o caviar das batatas. Vai custar muito mais caro, pois a plantação não pode ser tocada por dois anos”
[vi] "Hygge" é um fenômeno dinamarquês. It is as important to the Danes as "chic" is to the French, as "angst" is to the Swedes and as "cool" (as in "Cool Britannia") is to the English.É tão importante para os dinamarqueses como "chique" é para os franceses, como "revolta" é que os suecos e, como "cool" é para o Inglês.
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